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domingo, 29 de junho de 2008

A execução de contribuições previdenciárias na Justiça do Trabalho:As incoerências do parágrafo 3º do art. 114 da Constituição Federal:

* artigos jurídicos devem ser analisados, tendo-se por base o direito positivo vigente à época da publicação.

Apresentação:

A Emenda Constitucional n. 20/98, que veiculou a chamada reforma da previdência, modificou a estrutura do art. 114 da Constituição Federal, atribuindo ao juiz do trabalho a competência para executar de ofício as contribuições sociais previstas na letra" a" do inciso I e no inciso II do artigo 195 da Constituição Federal, "decorrentes das sentenças que proferir" (art. 114, §3º, CF 1.988), quais sejam:

"I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:

a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;

[ ...]

II - do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o artigo 201;" (nova redação, dada aos incisos pela Emenda Constitucional n. 20/98).

Grande ceIeuma doutrinária sobreveio à instituição, através da Emenda Constitucional n. 20, da possibilidade de execução das contribuições previdenciárias pela Justiça do Trabalho, contribuições estas decorrentes das sentenças proferidas no seu âmbito.

Discutiu-se, inicialmente, acerca de sua possível inconstitucionalidade (possível desrespeito aos princípios da ampla defesa e do contraditório), bem como com respeito à possibilidade de aplicação imediata da novel norma constitucional.

A tese da inconstitucionalidade não vingou pois as vozes que a defendiam não conseguiram provar indevida incursão da emenda número 20 pelo campo das matérias vedadas (art. 60, parágrafo 4º, CF).

Igualmente, não se verifica desrespeito algum a limitações implícitas, pelo que a constitucionalidade da emenda, ao proceder à alteração dos artigos 114 e 195 da CF/88, é indiscutível.

Não prevaleceu também a tese da não-aplicabilidade imediata da regra do parágrafo 3º do artigo 114 pois o legislador constitucional não exigiu medidas legais posteriores (não usou da clássica fórmula legislativa "nos termos da lei").

De fato, surgiram inicialmente procedentes dúvidas relativas ao rito a ser seguido, as quais, entretanto, foram fulminadas com a promulgação da Lei n. 10.035, de 25 de outubro que, alterando diversos dispositivos da CLT, estabeleceu os procedimentos, no âmbito da Justiça do Trabalho, de execução das contribuições devidas à Previdência Social.

Todas estas questões encontram-se devidamente esclarecidas e pacificadas na doutrina e na jurisprudência não carecendo, desta arte, de maiores considerações.

Mas este comento não visa analisar assuntos já sedimentados e suficientemente debatidos. Objetiva a discussão de dois temas complexos, relacionados à inclusão do parágrafo 3º no art. 114, do Estatuto Maior, os quais não foram adequadamente esclarecidos no âmbito doutrinário. A eles nos referimos como: o desvirtuamento da competência da Justiça do Trabalho; o injustificável desrespeito ao princípio processual da inércia.

Passamos, doravante, à análise deste dois temas.

O desvirtuamento da competência da Justiça do Trabalho:

A competência da Justiça do trabalho está expressamente consignada no caput do art. 114 da CF-88, nestes exatos termos:

"Art. 114 - Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas."

Infere-se, da atenta leitura da norma constitucional em estudo, que a Justiça do Trabalho destina-se a processar, conciliar e julgar uma espécie bem peculiar de lide, qual seja aquela que se trava entre empregado e empregador (elemento subjetivo da lide), decorrente da relação de trabalho (relação jurídico-material subjacente, secundária).

Cotejando-se as regras do art. 114, parágrafo 3º com as do art. 195, I, a) e II infere-se que o legislador constitucional criou uma novel modalidade de lide sujeita ao foro trabalhista, qual seja aquela que se trava entre o empregado e o INSS (art. 195, II) e entre o empregador e aquela autarquia federal (art. 195, I, a), cuja relação jurídico¬material subjacente corresponde a uma obrigação tributária.

Embora não se trate, por óbvio, de dispositivo inconstitucional, temos que o parágrafo 3º desvirtuou a regra de competência do caput, de vez que deferiu à JT competência para processar uma modalidade de litígio totalmente distinto, nos aspectos subjetivo e objetivo, daquele originalmente subsumido à sua competência qual seja, lide empregado/ empregador, gerada no bojo de uma relação empregatícia.

Malgrado a nossa oposição ao mencionado desvirtuamento da competência da JT admitimos a tese contrária, eis que a redação do caput do art. 114 pode avalizar referidas ampliações, desde que não se interprete o referido dispositivo restritivamente.

O injustificável desrespeito ao princípio processual da inércia da jurisdição:

Igualmente, não se justifica a exigibilidade de que o magistrado proceda de ofício, quando da execução das contribuições previdenciárias decorrentes das sentenças por ele proferidas.

Reza o artigo 2º do Código de Processo Civil que a jurisdição atua por provocação da parte interessada. E o princípio da inércia, um dos fundamentos do processo moderno.

Verdade é que existem exceções em todos os campos do processo, do cível ao criminal, passando pelo trabalhista.

Cite-se, a título de informação a convolação de concordata em falência, a arrecadação de bens de ausentes e incapazes, a exibição de testamento e a abertura de inventário, no processo civil. A expedição de ofício de ordem de habeas corpus, e a expedição da carta prevista no art. 145 da L.E.P, para o início do cumprimento da pena privativa de liberdade, no processo crime. Por fim, não podemos olvidar da regra do art. 878 da CLT, que permite ao juiz do trabalho dar início, de ofício, à execução trabalhista em face do empregado ou do empregador.

As exceções, cuja lista taxativa foi apresentada, apenas evidenciam o rigor do princípio da inércia, uma conquista histórica do processo moderno.

Todas as exceções à regra encontram fundamento em interesses e direitos maiores, como o da segurança jurídica (arrecadação de bens de ausentes e incapazes), do interesse social (convolação de concordata em falência), do direito de liberdade (habeas corpus ex officio) etc.

Não encontrando-se fundamento consistente para exceções à regra processual da inércia, não pode a mesma prosperar. O caso em tela infringe flagrantemente o princípio da inércia pois a regra inserta no parágrafo 3º determina que o juiz execute ex officio as contribuições previdenciárias decorrentes das sentenças por ele proferidas. Não encontramos justificativa aceitável para esta não¬obediência ao art. 2º do Cpc.

Ou será que o fundamento para o desrespeito a tão importante regra processual estaria no desequilíbrio dos cofres da previdência, os quais encontram-se ávidos de mais recursos para cobrir o rombo decorrente do sistema previdenciário adotado?

Desculpamo-nos pela ironia, mas certo é que não há justificativa plausível para a exceção em comento, ainda mais tendo-se em conta que a autarquia federal INSS dispõe de eficiente e numeroso corpo de procuradores (l), estes sim aptos, no nosso entender, a solicitar a execução daquelas contribuições previdenciárias.

Em resumo, ou se apresenta uma razoável justificativa para qualquer exceção ao princípio da inércia, ou a exceção não há de ser admitida na moderna sistemática do processo.

In casu, malgrado nossos esforços, não logramos êxito no trabalho de identificar o fundamento aceitável para a exceção insculpida no art. 114, parágrafo 3º da CF. Isto sem mencionarmos que, conforme o caso, a execução levada a efeito pelo magistrado pode até colidir com interesses do INSS que pode, por exemplo, desejar negociar (parcelar) o débito ou então executar o crédito em um momento que lhe seja oportuno.

Considerações Finais:

Não foi objetivo deste estudo, breve e singelo, a análise da repercussão da inovação implementada no âmbito do processo do trabalho e da competência da Justiça Laboral.

Não foi a nossa intenção verificar se foi viável ou não a modificação verificada. Isto demandaria trabalhosa pesquisa de campo, com vistas à colheita de opiniões de magistrados, advoga¬dos e procuradores do INSS, através das quais poder-se-ia dessumir o grau de receptividade que mereceram as modificações processuais insertas no parágrafo 3º do art. 114.

Circunscreveram-se as considerações a aspectos de ordem técnica e, neste particular, o co-mentado parágrafo 3º é digno de acerbas críticas.

A ampliação da competência da Justiça do Trabalho pode até ser defendida, conforme se interprete o art. 114, caput de maneira mais ou menos restritiva.

Entretanto, no que atina à execução ex officio das contribuições previdenciárias decorrentes de sentenças proferidas em sede de processo laboral pedimos a devida vênia para não admitir esta exceção à regra da inércia da jurisdição, dada a falta de uma sólida justificativa para a mesma.
Não podemos concordar com este rebaixamento da Justiça Laboral à categoria de "cobradora" de dívidas do INSS.

Respeitamos a tese dos que se manifestam integralmente favoráveis às inovações proces­suais implementadas no seio da Emenda 20/98, no entanto, a exigibilidade de que o magistrado do trabalho execute as contribuições devidas ao INSS não respeita a moderna sistemática proces­sual pátria, pois impõe a um magistrado uma obrigação legalmente deferida a uma autarquia federal sem que, para este proceder, existam ra­zões plausíveis.

(1) Só no ano de 2002 foram realizados dois concursos para procura¬dores federais para cobrir um total de mais de 1.280 vagas. Destas, a grande maioria será destinada à autarquia INSS.
Publicado no Jornal do 16º Congresso Brasileiro de Previdência Social, fls. 55/57, evento realizado em São Paulo entre os dias 24 e 25 de março de 2003, sob a coordenação do Dr. Wladimir Novaes Martinez e na Revista de Previdência Social, editora Ltr, v.28, n.280, Mar. 2004, pg. 256.

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