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segunda-feira, 14 de março de 2016

A inocência, a culpa e a mídia

O Brasil pós-ditadura era uma nação formada por pessoas ávidas de direitos e de garantias do respeito a estes direitos. Após duas décadas de um estado de exceção, no período mediado entre 1964 e 1985, onde direitos fundamentais como a liberdade de imprensa, de pensamento e de expressão eram sistematicamente tolhidos, a Assembleia Nacional Constituinte logrou êxito em dotar o Brasil de um texto constitucional moderno e vigoroso, estruturado para colocar o país novamente nos caminhos da democracia.

Ainda que se critique a Constituição Federal de 1.988, sobretudo do ponto de vista da técnica adotada e da quantidade excessiva de normas supérfluas em um texto constitucional, e que poderiam constar da legislação infraconstitucional, é indubitável que o espírito que se extrai de nossa Carta Política é o da construção de um autêntico estado democrático de direito onde todos, incluindo-se o próprio estado e governantes, se submetem ao rigor da lei, e onde uma gama gigantesca de direitos fundamentais é assegurada, com os adequados instrumentos para a sua concretização e defesa.

Neste contexto, nos deparamos, no âmbito do artigo 5º da CF/1988, com a imprescindível norma da presunção de inocência a qual está inscrita no inciso LVII do mencionado artigo e é versada nos termos de que “ninguém será considerado culpado antes do trânsito de sentença penal condenatória”.

A norma que estatui o direito fundamental de todos a ter a sua inocência presumida, quaisquer que sejam as circunstâncias, sendo ainda assegurado ao cidadão o direito de se valer de todos os meios processuais para ter afastada a imputação criminal que sobre o mesmo recai.

Feita esta breve e singela digressão jurídica, passemos a apreciar como a mídia tem se portado diante da presunção de inocência, nas situações em que há suspeita do cometimento de algum delito, sobretudo quando o investigado é alguém de certa notoriedade.

Pois o cidadão que tem acompanhando, seja pela televisão, seja pelos portais de informação na internet a cobertura do, ainda em investigação, escândalo de corrupção na Petrobrás, pode perceber que a mídia tem ostentado uma postura que, intencionalmente ou não, incute no telespectador uma autêntica presunção de culpa da pessoa sobre a qual recai a investigação criminal e a cobertura jornalística. 

Dúvida não há de que a cobertura jornalística é um dever da imprensa e mesmo um direito do telespectador, porém, o enfoque há de ser mais informativo e elucidativo e mesmo passional. 

O que nos causa preocupação é o fato de que a cobertura jornalística foca pesadamente nos indícios do cometimento do delito, deixando de expor ao telespectador que nada daquilo macula a inocência do investigado, o qual terá a seu dispor os instrumentos jurídico-processuais para reafirmar a sua inocência a qual, como dito, é presumida. A concretização da responsabilidade criminal decorre de um processo complexo e exaustivo, não de meros indícios, ainda que fortes.

Poder-se-ia tergiversar, argumentando que a cobertura jornalística em momento algum se refere ao cidadão investigado como culpado deste ou daquele delito, mas sempre como investigado, denunciado, réu etc. Esta ponderação se faz necessária, porém é fato que a forma como tem sido feitas as coberturas jornalísticas, sobretudo da chamada Operação Lava Jato, levam o telespectador a crer que são criminosas todas as pessoas cujos nomes são reiteradamente citados nos telejornais, porém a mídia televisiva, escrita, ou virtual, se olvida de esclarecer que a grande maioria dos investigados sequer foi condenada em primeira instância e, os que foram, ainda têm recursos pendentes de julgamento no segundo grau de jurisdição sendo, para efeitos legais, inocentes! Em outras palavras, se gasta muito tempo esmiuçando-se as espetaculares operações policiais e os avanços da ação penal, mas pouco ou nada se proclama sobre a ainda condição de inocente dos réus.

Exemplifiquemos com algumas situações: uma condução coercitiva, como a que foi submetido o ex-presidente Lula no dia 04/03/2016 não significa o aprisionamento do mesmo, nem que foi apurado algo mais grave acerca de sua conduta ou muito menos que ele seja culpado de alguma coisa. É apenas uma medida de que dispõe o juiz criminal para compelir determinada pessoa a prestar um depoimento. Este relevante aspecto jurídico do fato praticamente não foi abordado pelos meios de comunicação que cobriram a espetacular ação da Polícia Federal.

Uma apresentação de denúncia pelo Ministério Público, por exemplo, igualmente nada atinge o estado de inocência do cidadão e mesmo quando esta denúncia é recebida e o outrora denunciado vira réu perante a Justiça, estamos muito distantes da confirmação da culpa do denunciado. A apresentação da denúncia decorre da reunião de informações e provas, pelo membro do Ministério Público, que podem evidenciar a prática de um delito, ao passo que o recebimento da denúncia nada mais é que o atestado, pelo juiz criminal, de que tecnicamente a peça é adequada, nada mais. Não obstante estas ponderações jurídicas, sempre são transmitidas com acendrado alarde a apresentação de denúncia ou a admissão da mesma (e início do processo penal), sobretudo quando a pessoa sobre a qual pesam as acusações tem certa notoriedade. A imprensa dedica horas de telejornais e páginas e páginas de jornais impressos ou de portais de notícias divulgando e debatendo as ditas apresentações e aceitações de denúncias, mas de regra pouco esclarece que 
a culpa do denunciado ainda não está presente, e que ele terá o sagrado direito constitucional do devido processo, com o contraditório e a ampla defesa, para reafirmar seu estado de inocência.

A cobertura jornalística há de ser melhor nutrida de informações jurídicas. Um profissional do direito tem conhecimento técnico para abstrair a informação correta a partir da cobertura, porém o leigo pode ser levado a erro e induzido a formar sobre a pessoa do indiciado, denunciado ou réu uma imagem de criminoso quando, para efeitos legais, ainda é o mesmo um inocente. Cabe à imprensa cobrir os fatos de modo mais adequado, de forma a se evitar que o leitor comum, sem conhecimentos jurídicos, compreenda e interprete os fatos com mais clareza a realidade.

Nos recordamos da cobertura de um caso de supostos abusos sexuais perpetrados por proprietários e funcionários de uma escola infantil de São Paulo em princípios da década de 90, o famoso Caso Escola Base, onde quem assistiu à cobertura pela imprensa restava convencido da culpa dos envolvidos mas, aprofundada a investigação, a inocência de todas as pessoas sobre as quais pairavam as investigações restou reafirmada.

Sentimos que há, na cobertura jornalística, uma clara intenção de dotar o fato de uma acentuada gravidade, pois isto se reflete em audiência. Fases incipientes do processo penal são tratadas como o atingimento da confirmação da culpa, gerando uma visão turva da realidade dos fatos.

Este modesto artigo tem o propósito único de defender que a cobertura jornalística de investigações criminais despenda um tempo informando o telespectador, ou mesmo o usuário da internet, com informações no sentido de que a pessoa sobre a qual pendem as suspeitas é inocente e assim permanecerá até que, uma vez condenada criminalmente, se transite a sentença condenatória.

Um exemplo concreto da conduta que propugnamos deve ser adotada é a que sucedeu ao, a nosso modesto ver descabido, pedido de prisão preventiva do ex-presidente Lula, onde diversos órgãos da imprensa dedicaram razoável tempo ouvindo o que juristas pensavam sobre o requerimento formulado pelo Ministério Público de São Paulo. Coberturas como esta elevam nossa cultura jurídica, permitindo interpretações mais apropriadas do curso dos fatos em um processo criminal.

Enfim, por mais fortes e consistentes que sejam as evidências do cometimento de um delito, é preferível se tratar um criminoso como um inocente, do que um inocente como um criminoso. É assim que se procede no estado democrático de direito.

O espírito da presunção de inocência há de orientar a atividade do jornalista para que tenhamos coberturas desapaixonadas, isentas e equilibradas e que transmitam ao cidadão informações autenticamente claras e verdadeiras.