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quarta-feira, 27 de julho de 2011

Hipóteses de não-caracterização da responsabilidade civil do empregador pelo acidente do trabalho

1 – Introdução:
A Constituição Federal de 1.988 assegura ao empregado o direito a “seguro contra acidente do trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa” (art.7º, XXVIII).
 Infere-se, pela exegese de citada norma constitucional, que a responsabilidade civil do empregador pelo infortúnio verificado é de natureza subjetiva, exigindo-se que o mesmo concorra com sua culpa (lato sensu) para que sobre si possa incidir a responsabilização pelo dano.
 Ao contrário da indenização acidentária (devida pelo segurador - art.7º, XXVIII, primeira parte) que não será afastada nem mesmo em face de caso fortuito ou força maior, a indenização comum, fundada no direito civil, poderá não ser devida em diversas situações, sobre as quais falaremos pormenorizadamente a seguir.
 2 – Caracterização do dever de indenizar, na responsabilidade subjetiva:
 Para que o empregado vitimado por um acidente possa exigir de seu empregador o pagamento de uma indenização quatro condições hão de ser satisfeitas: 1) Existência de uma conduta do empregador, que poderá ser positiva (ação) ou negativa (omissão - ex: não providenciar equipamento de segurança); 2) Existência de um dano, que poderá ser material (redução de capacidade laborativa, por exemplo), psicológico (um trauma, em virtude da gravidade do acidente), estético (lesões graves na face) etc; 3) Relação de causalidade entre os itens 1 e 2, devendo ser provado que o dano resultou da conduta do empregador; 4) Culpa lato sensu, uma vez que só poderá ser responsabilizado se tiver agido com culpa ou dolo. Lembrando-se que na atual ordem constitucional qualquer grau de culpa pode gerar a responsabilidade do patrão, não se exigindo mais a culpa grave, como ocorria anteriormente.
 Qualquer fato que elimine um dos itens desta estrutura lógica resultará na não-caracterização da responsabilidade patronal pelo acidente do trabalho.
3 – Fato exclusivo da vítima (empregado):
 Sérgio Cavalieri Filho (1) prefere falar em fato exclusivo da vítima a usar a terminologia culpa exclusiva, pois, no seu entender, a questão não pertence ao campo da culpa, circunscrevendo-se ao âmbito do nexo causal, e sobre este prisma há de ser analisada.
 O fato exclusivo da vítima impede que se verifique o nexo de causalidade entre a conduta do empregador e o dano que sobreveio ao empregado. In casu, não houve por parte do empregador a prática de ato ou omissão alguma que tenha resultado no acidente.
Ensina Maria Helena Diniz (2) que não haverá responsabilidade patronal se se provar que, por exemplo, o operário deliberadamente colocou um dedo na máquina para provocar o acidente e receber a indenização.
 A máquina que lhe causou o dano figura como mero instrumento do acidente, no dizer de Sílvio Rodrigues (3), sendo o operário lesionado o próprio autor do evento que lhe foi danoso.
Washington de Barros Monteiro (4) diz textualmente que “o nexo desaparece ou se interrompe quando o PROCEDIMENTO DA VÍTIMA é a causa ÚNICA do evento”.
Assim já decidiu o Tribunal de Justiça de Goiás:
"Apelação Cível. Ação de indenização por danos decorrentes de acidente de trabalho. Inexistência das condutas comissiva e omissiva imputadas ao empregador. Culpa exclusiva do obreiro. Afastado o nexo causal. Não caracterização da responsabilidade civil. 1- O dever de indenizar os danos decorrentes de acidente, mesmo que ocorrido durante o pacto laboral, surge somente quando comprovada a existência do dano, da conduta ilícita, do nexo causal e da culpa do empregador. 2- A prova pericial constatou que foram fornecidos os equipamentos de proteção individual necessários e suficientes a garantir a segurança do trabalho, razão pela qual resta descaracterizada a suposta conduta ilícita do empregador. 3- Tendo em vista que o empregador prestou toda a assistência necessária por ocasião da ocorrência do evento danoso, não há que se cogitar em omissão culposa ilícita. 4- A culpa exclusiva da vítima afasta o nexo causal entre os danos sofridos e qualquer conduta praticada por terceiro, porquanto esta não contribuiu para o advento do evento danoso. 5- Responsabilidade Civil não configurada. 6- Recurso conhecido e improvido". (TJ-GO)
Poderíamos ainda citar a hipótese de o empregado intencionalmente fazer uso irregular do equipamento de segurança no intuito de que lhe sobrevenha um acidente que lhe possa dar direito a uma indenização. O acidente foi resultado de sua forma de proceder, portanto, descabe a responsabilização do empregador.
No entanto, configurada está a responsabilidade patronal se, no caso em análise, não houvesse o empregador providenciado o equipamento de segurança, pois que haveria nexo entre sua conduta culposa (omissão) e o dano advindo ao empregado.
4 – Caso fortuito e força maior:
 “Fala-se em caso fortuito ou de força maior quando se trata de acontecimento que escapa a toda diligência, inteiramente estranho à vontade do devedor da obrigação”.(5)
Sérgio Cavalieri Filho (6) considera caso fortuito o fato necessário imprevisível e, por conseguinte, inevitável. A força maior seria o fato necessário também inevitável, porém previsível, como o são os fatos da natureza (raio, enchente, terremoto). Pode-se prever uma tempestade, mas não a gravidade dos danos que ela pode causar.
Divergências há quanto à definição destes institutos, mas tal debate nunca foi de relevância no direito brasileiro eis que os dois códigos civis tratam-nos quase na condição de sinônimos (CC de 1916, artigo 1.058, parágrafo único; CC de 2002, artigo 393, parágrafo único), sendo também idênticas as conseqüências jurídicas de sua ocorrência.
Ambos excluem o nexo de causalidade e qualquer forma de responsabilização do empregador, pois correspondem a um fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir (Novo CCB, artigo 393, parágrafo único).
Haverá, entretanto, responsabilidade do patrão se, malgrado o dano resultar de um fato necessário (enchente, tempestade etc), os efeitos deste possam ser evitados ou impedidos por um ato do empregador (providenciando equipamentos de segurança, por exemplo).
Suponhamos, por exemplo, que durante uma intensa chuva tenha ocorrido o desabamento e a inundação de uma mina, soterrando e matando diversos mineiros. Embora seja inquestionável que a chuva seja um fato necessário será preciso questionar se os efeitos da mesma (desmoronamento e inundação) eram inevitáveis ou não pois, sendo evitáveis por ato do patrão verifica-se o nexo de causalidade e este deverá ser responsabilizado. “É preciso apreciar caso por caso as condições em que o evento ocorreu, verificando se nessas condições o fato era previsível ou inevitável”.(7)
Para que haja a exclusão do nexo causal e fique o empregador isento de qualquer responsabilidade necessário será, portanto, que os efeitos do fato necessário sejam inevitáveis.
5 – Fato de terceiro:
Igualmente, o fato de terceiro é idôneo a afastar o nexo de causalidade e, por via de consequência, a responsabilidade patronal.
Entretanto, o mesmo é de difícil configuração quando da ocorrência de um acidente no curso da relação de emprego.
 Poderíamos, por exemplo, vislumbrar a hipótese de o empregador haver providenciado os equipamentos de segurança exigidos pelas normas de segurança do trabalho e, mesmo assim, houver advindo danos à pessoa do empregado, decorrentes da péssima qualidade dos equipamentos adquiridos pelo patrão. À primeira vista poderia até parecer se tratar de fato de terceiro (empresa que vendeu os equipamentos ao patrão) na medida em que há uma relação lógica de causalidade entre o acidente verificado e a qualidade ruim do equipamento. No entanto, o caso não é de fato de terceiro, eis que o empregador concorreu com sua culpa in eligendo, ao não investigar acerca da qualidade dos equipamentos adquiridos.
Seria, no entanto, um caso de fato de terceiro em que restaria excluída a responsabilidade patronal a situação de o empregado sofrer lesões ou até mesmo falecer em virtude de um curto-circuito em máquina que operava, fato este ocorrido em face de excessiva tensão na rede elétrica, atribuída a falhas de operação da fornecedora. Neste caso, não obrou com culpa alguma o empregador, devendo ser atribuída exclusivamente ao terceiro (fornecedora da energia elétrica) a responsabilidade pela reparação dos danos verificados.
6 – Outras causas excludentes da responsabilidade do empregador:
Maria Helena Diniz (8) enumera algumas situações onde restará excluída a responsabilidade patronal pelo acidente a saber: 1) Advier de doença endêmica adquirida pelo empregado que mora em regiões onde ela se desenvolve, salvo se se provar que tal doença se manifestou em razão da natureza do trabalho; 2) For decorrente de doença degenerativa; 3) For inerente a grupo etário.
Nestas situações, igualmente, não há de se falar em nexo de causalidade, estando o empregador isento de qualquer responsabilidade civil.
7 – Conclusões:
Diversas são as situações em que não se verificará a responsabilidade patronal pela indenização civil.
Referidas situações resultam da exclusão do nexo de causalidade, sem o qual não se preenchem os requisitos básicos para configuração do dever de indenizar.
Cada caso, entretanto, há de ser analisado profundamente, sob pena de aplicar-se a legislação de modo injusto, prejudicando o obreiro. Há de se inferir se, para a ocorrência do evento, não contou o empregador com nenhum grau de participação, seja com uma conduta ativa, seja com uma conduta omissiva, seja com uma conduta dolosa, seja com uma conduta culposa, pois concorrendo para a existência do infortúnio deverá o empregador também ser responsabilizado civilmente.
 8 - Notas:
(1) Programa de Responsabilidade Civil, p.65.
(2) Curso de Direito Civil Brasileiro - Responsabilidade Civil, p.409.
(3) Responsabilidade Civil, p.179.
(4) Curso de Direito Civil - Parte Geral, p.279.
(5) Sérgio Cavalieri Filho, op. cit., p.66.
(6) Sérgio Cavalieri Filho, op. cit., p.66.
(7) Sérgio Cavalieri Filho, op. cit., p.66/67.
(8) Obra citada, p.409.
 9 - Bibliografia referenciada:
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 2ª edição. São Paulo : Malheiros, 1999.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro - Responsabilidade Civil. 15ª edição revista. São Paulo : Saraiva, 2001.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil - Parte Geral. 25ª edição. São Paulo : Saraiva, 19??.
      RODRIGUES, Sílvio. Responsabilidade Civil. 12ª edição. São Paulo:  Saraiva, 19??.


Publicado no Jornal do 5º Congresso Brasileiro de Saúde e Segurança no Trabalho. São Paulo/SP: Editora LTr, 2004. p. 22-23.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

O acidente do trabalho e a questão da cumulação das indenizações por dano moral e estético resultantes de um mesmo fato*

       1 - Introdução:
O fundamento normativo da responsabilidade civil (dever de indenizar) está hoje alicerçado em dois importantes dispositivos legais; um, de natureza constitucional, qual seja o artigo 5º, inciso V, da Lei Maior, e outro, de natureza infraconstitucional, correspondente ao artigo 186 do Novo Código Civil Brasileiro (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002).
Em ambos os citados preceitos normativos há referência expressa à indenizabilidade dos danos de natureza exclusivamente moral estando, portanto, ultrapassados quaisquer debates acerca da possibilidade jurídica de o lesado se ver ressarcido, ainda que tenha sofrido lesões em interesses de natureza não patrimonial.
Questão atual e controversa, no entanto, é a relativa à admissibilidade de condenação do empregador, em caso de acidente do trabalho, ao pagamento de indenização por dano moral e por dano estético, decorrentes do mesmo fato.
Seria cabível, em caso de acidente do trabalho de que tenham resultado lesões de natureza estética, a cumulação dos pedidos de indenização por dano moral e de indenização por dano estético?
Responder a esta indagação é o que objetivamos com este breve estudo.
2 - Classificação jurídica dos danos na doutrina da responsabilidade civil:
A indenização por danos materiais presta-se ao ressarcimento dos prejuízos e despesas de ordem econômica, ou seja, que podem ser apreciados e dimensionados pecuniariamente. As despesas médico-hospitalares e a redução de capacidade laborativa são os exemplos de danos de natureza material mais comuns quando se fala deste fato pertencente ao campo da infortunística que é o acidente do trabalho.
De seu turno, a indenização pelo dano moral não tem esta natureza ressarcitória, na medida em que não corresponde a uma quantia em dinheiro que será destinada ao acidentado para reparar-lhe um dano em interesse de natureza não patrimonial. Em outras palavras, com a indenização por danos morais não está a se pagar a dor sofrida pela vítima do acidente do trabalho, nem o sofrimento que, eventualmente, este fato tenha trazido para os seus familiares, no caso de sua morte. Os interesses lesados que justificam e autorizam a condenação do empregador ao pagamento de indenização por danos morais não têm natureza patrimonial. A indenização por danos morais destina-se, antes, a proporcionar no espírito da vítima uma satisfação que reduza o sofrimento decorrente do fato (acidente do trabalho) que a afligiu, servindo ainda de punição ao autor do ato ilícito, tendo assim efeito também pedagógico.
A partir desta singela exposição podemos estabelecer uma classificação dicotômica acerca dos danos e interesses indenizáveis: 1) quando os interesses lesados forem de natureza patrimonial estaremos frente a um dano material; 2) quando os interesse lesados forem de natureza não patrimonial estaremos diante de um dano moral.
Mas, onde ficam os danos estéticos nesta classificação? São eles danos morais? São danos materiais? Correspondem a um tertio genus?
A última hipótese há de ser desconsiderada de plano, pois os danos estéticos não correspondem a uma terceira classe de danos. A única classificação admissível, quando se procura enquadrar os danos indenizáveis, é aquela dicotômica que já apresentamos. Ou seja, o dano, a ser indenizado, ou é material, ou moral, segundo a presença, ou não, de lesões de natureza patrimonial, decorrentes de determinado fato jurídico, no caso, estamos falando do acidente do trabalho.
Maiores elucidações neste sentido serão apresentadas no próximo tópico.
3 – O dano estético. Definição e caracterização:
Segundo o escólio de Maria Helena Diniz,

"dano estético é toda alteração morfológica do indivíduo, que, além do aleijão, abrange as deformidades ou deformações, marcas e defeitos, ainda que mínimos, e que impliquem sob qualquer aspecto um afeiamento da vítima, consistindo numa simples lesão desgostante ou num permanente motivo de exposição ao ridículo ou de complexo de inferioridade, exercendo ou não influência sobre sua capacidade laborativa" (1).

O acidente do trabalho pode ou não resultar em alteração morfológica do trabalhador vítima do infortúnio. Ocorrendo tal alteração morfológica, sendo ou não sendo ela ostensiva, estamos diante de um dano de natureza estética.
A definição da renomada civilista aborda o dano estético sob o prisma das lesões que determinado fato deixa na beleza física humana. O que interessa, para o jurista, não é o dano estético em si, enquanto evento do mundo dos fatos, mas sim as consequências e repercussões jurídicas dele decorrentes, in casu, o dever de indenizar.
O dano estético, de regra, resulta em grande sofrimento para a vítima, especialmente quando a beleza física é para a mesma bem de grande valor. Não é incomum, também, a identificação de perdas de natureza material, como as referentes a tratamentos clínicos posteriores e à redução da capacidade para o trabalho da pessoa, mormente quando o dano estético se manifesta por mutilações e/ ou perda da capacidade funcional de determinado órgão ou parte do corpo.
A ação civil de natureza indenizatória que tenha como fundamento jurídico um acidente do trabalho de que tenha resultado lesão de caráter estético pode pleitear a indenização por danos morais e por danos materiais, de forma cumulada ou isolada.
Eventual pedido de indenização específica, e à parte, referente exclusivamente aos danos estéticos não há de ser deferido, eis que as conseqüências das lesões estéticas já constituirão fundamento tanto para o pedido de indenização por danos materiais, caso da lesão estética resultem gastos com cirurgias plásticas e demais gastos hospitalares, ou ainda em perda ou redução da capacidade para o labor, e também já constituirão, as lesões estéticas, fundamento para o pedido de indenização por danos morais, referentes ao sofrimento e à dor que por toda a vida acompanharão o trabalhador que carregará consigo as marcas do infortúnio.
Observe-se que não estamos pugnando pela não-indenizabilidade do dano estético. Acreditamos, apenas, que todas as consequências dos danos estéticos podem ser direcionadas no sentido de fundamentar pedidos de indenização por danos materiais ou morais.
Militam em favor de nossa tese, verbi gratia, os posicionamentos judiciais abaixo, da lavra do augusto TRT da 3ª Região:

Ementa: Dano moral e dano material- "Bis in idem" - Não configuração. O dano material - que compreende os danos emergentes e os lucros cessantes - não se confunde com o dano moral, embora decorrentes de um mesmo ato ilícito. O dano estético, por sua vez, está englobado pelo dano moral, já que se trata de um só bem jurídico atingido: a integridade e a dignidade humana, ambos direitos da personalidade. Não se configura, portanto, "bis in idem" o deferimento de indenização por danos materiais e reparação de danos morais, já que são institutos distintos, embora gerados por um mesmo ato. De igual modo, não mais persiste a idéia de que não se pode cumular o pedido de ambos na mesma ação. (TRT 3ªR.-1T -RO/6078/01 - Rel.Juiz Jos Marlon de Freitas - DJMG 20.7.01 P.07).

Ementa: indenização por danos. Prejuízo extrapatrimonial. Há dois gêneros de danos: os materiais, economicamente apreciáveis; e os não-materiais, ou morais, impassíveis de apuração econômica, mas também indenizáveis. O dano moral compreende todo prejuízo de ordem extrapatrimonial, isto é, aquele que ocorre no plano ideal, e que não pode ser aferido de forma rigorosa, podendo atingir a honra, a imagem, a psique, o equilíbrio íntimo, a integridade física da pessoa, etc. Assim, tanto o prejuízo estético como as dores físicas e interiores sofridas pela vítima representam danos morais, conjuntamente indenizáveis. (TRT 3ª R 6T RO/14139/02 Red. Juiz Ricardo Antônio Mohallem DJMG 19.12.02 p.30).

Ementa: Dano estético - Indenização por dano moral - O conceito de dano moral é bem mais amplo do que "ofensa à honra". Caracteriza o dano moral quando atingido qualquer bem jurídico insuscetível de avaliação econômica ou pecuniária, o que leva a questão para o campo dos direitos de personalidade, sejam os direitos à integridade física, sejam os direitos à integridade moral. Assim, devida a indenização pelo dano estético sofrido em decorrência de acidente de trabalho. (TRT 3º R.- 5T - RO/21016/98 - ReI. Juíza. Taísa Maria Macena de Lima - DJMG 14.8.99 - p. 18).

Não é incomum, entretanto, encontrarmos julgados onde há a admissão das indenizações cumuladas por danos morais e estéticos (2). Os magistrados que assim pensam admitem tal situação porque, na concessão da indenização, separam os fatos que podem fundamentar a indenização por danos morais (a dor do acidente, o sofrimento) e os que podem fundamentar a indenização pelo dano estético (lesão à integridade e à harmonia física da pessoa). Segundo o nosso modesto pensar todas estas consequências do fato, seja a dor, seja a desarmonia física decorrente do dano estético, como resultam em lesões de interesse de natureza não patrimonial, merecem uma indenização única, a título de dano moral, tão somente.
4 – Conclusões:
Qualquer fato jurídico que gere a incidência das normas de responsabilidade civil proporcionará ao lesado (vítima), conforme o caso, o direito à indenização por danos morais e materiais, cumulados ou isolados.
O dano estético é um fato de acendrada importância jurídica e capaz de autorizar a vítima a pleitear em juízo a indenização correspondente, a qual há de circunscrever-se às duas modalidades possíveis de indenização, a por danos morais, ou a por danos materiais.
O sofrimento, a dor, a angústia resultantes do dano estético justificam o pleito de uma indenização por danos morais, na medida em que esta modalidade de indenização repara os padecimentos resultantes da privação de um bem sobre o qual a vítima teria interesse reconhecido juridicamente, no caso a beleza e a integridade físicas.
Se, ainda como resultado do dano estético, puder ser identificado prejuízo de ordem econômica, como é o caso de o acidentado ter sua capacidade laborativa reduzida, há fundamento para o pedido de indenização por danos materiais.
A condenação ao pagamento cumulado de indenização por danos morais é estético, entendemos, é uma afronta à lógica jurídica e se constitui em bis in idem vedado pela ciência jurídica.
5 – Bibliografia referenciada:
DINIZ, Maria Helena. "Curso de Direito Civil Brasileiro", 7º volume, Responsabilidade Civil. 15ª ed. rev. atual. 2001. Editora Saraiva. São Paulo.
6 – Notas:
1 - "Obra referenciada", p. 73.
2 - Julgado do TRT da 3ª Região: Ementa: Dano moral e dano estético. Cumulação. Admite-se a cumulação do dano moral e estético, ainda que derivados do mesmo fato, quando possuem fundamentos distintos. O dano moral compensável pela dor e constrangimento impostos ao autor e o dano estético pela anomalia que a vítima passou a ostentar. O dano estético afeta "a integridade pessoal do ser humano, em geral, e em particular a harmonia física, concebidas como materialização de um direito humano garantido no nível constitucional". Ele poderá ser o resultado de uma ferida que gera cicatriz, da amputação de um membro, falange, orelha, nariz, olho ou outro elemento da anatomia humana. Quando se constata que um semelhante possui alguma parte do corpo alterada em relação à imagem que tinha formado o observador, o fato causa impacto a quem a percebe através de seus sentidos. Inegável que esse dano estético provoca também impacto sobre a percepção da própria vítima, afetada com a diminuição da harmonia corporal. O que se visa proteger não é a beleza, valor relativo na vida cotidiana, mas garantir as circunstâncias de regularidade, habitualidade ou normalidade do aspecto de uma pessoa; busca-se reparar que o ser humano, vítima da cicatriz, se veja como alguém diferente ou inferior, ante a curiosidade natural dos outros, na sua vida de relação. A reparação não resulta, portanto, do fato de a cicatriz ser repulsiva, embora essa circunstância possa aumentar o quantum ressarcitório, tampouco de ser sanada mediante uma cirurgia plástica, fato que poderá atenuar o valor da indenização (Grandov, Balldomero e Bascary Miguel Carril/o. cicatrices. Dano estetico y Derecho a Ia integridad fisica. Rosario: Editorial FAZ, 2000, p. 34 e 40). Aliás, o STJ já se pronunciou nesse sentido por meio de suas turmas nos seguintes acórdãos: 2" T / AGA 276023/ RJ / Relatar Min. Paulo Gallotti / Fonte: DJ / DATA: 28.8.00 /pg: 00068/RSTJ/vol..:00138 pg: 00172; 3" T / REsp n. 254445/ PR / Relator Min. Nancy Andrighi / Fonte: DJ Data: 23.6.03 / pg: 00351; e 4" T / REsp n. 347.978 / RJ / Relator Min. Ruy Rosado de Aguiar / Fonte: DJ Data: 10.6.02, pg.: 00217. Se o valor fixado pelo juiz considerou os dois aspectos, o dano estético já foi objeto de ressarcimento.(TRT 3ª R, 2ª Turma, 01771-2002-032-03-00-2, RO ReI. Juíza Alice Monteiro de Barros, DJMG 30.7.03 p.l0).


* Publicado no Jornal do 4º Congresso Brasileiro de Segurança e Saúde no Trabalho. São Paulo/SP : Editora LTr, 2003. p. 37-39.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

O direito material do trabalho e o colapso do Judiciário Trabalhista: uma relação inegável*

* artigo produzido e publicado no ano de 2.003.


Neste corrente ano de 2003 a Consolidação das Leis do Trabalho completa 60 anos de vida normativa, regendo as relações laborais de gera­ções e gerações de trabalhadores.
Seis décadas podem até parecem um perío­do muito grande, mas não quando se trata da vi­gência de um texto jurídico-legislativo, haja vista o vigor da Constituição Americana e do Código Civil francês, ambos promulgados há cerca de dois séculos e ainda dotados de plena eficácia social.
Mas, o que diferencia a velha, mas elogia­da, Constituição Americana da nossa não tão ve­lha, mas veementemente criticada, CLT?
Poderíamos resumir a resposta em apenas uma palavra: adaptabilidade.
O texto constitucional dos americanos foi reiteradamente adaptado pela Suprema Corte dos EUA durante estes seus mais de duzentos anos de história, apresentando-se, portanto, sempre mo­derno para efeito de disciplinamento jurídico das situações controvertidas que surgem na esteira do progresso da vida social, que ganha ares cada vez mais complexos. Tudo isto sem atingir o espírito liberal conferido pelos constituintes de 1787.
A nossa Consolidação das Leis do Trabalho, de seu turno, não conseguiu acompanhar o de­senvolvimento das relações sócio-laborais, as quais se tornaram cada vez mais complexas e di­versificadas. E certo que diversos dispositivos de seu texto foram revogados e/ou modificados, entretanto, o espírito da Consolidação mantém-se intocado, quase sessenta anos depois de sua entrada em vigor no longínquo governo de Ge­túlio Vargas.
O reflexo imediato desta incapacidade de a CLT reger coerentemente as relações empregatí­cías de um Brasil moderno é constatado no Judi­ciário Trabalhista Pátrio, o qual vem, há décadas, sendo sufocado pelo número crescente de litígios que batem às suas portas à busca de uma respos­ta estatal.
O número crescente de processos poderia até representar um sinal de efetivação do princí­pio do amplo acesso ao judiciário, segundo o qual deve ser viabilizado e fomentado o exercício do direito constitucional da ação (CF, art. 5º, XXXV), enquanto meio eficaz de exercício e consolidação da cidadania.
Mas, analisando-se o colapso trabalhista não há como se chegar a esta conclusão. O que se vê é uma prestação jurisdicional morosa, dispendiosa e, nem sempre, efetiva, sendo este um quadro que se contrapõe radicalmente ao amplo acesso ao judiciário defendido por Cappelletti, o qual pressupõe um judiciário rápi­do, cuja tutela seja eficaz.
Como solucionar o quadro calamitoso em que se encontra o judiciário trabalhista no Brasil? Modernizando a legislação processual? Contratan­do-se mais juízes? Reduzindo-se os recursos?
A legislação processual do trabalho nutre-se de uma vitalidade que não encontramos no direito do trabalho. Os inesgotáveis progressos que verificamos na seara do processo civil comum adentram, com ou sem adaptações, à casa do pro­cesso trabalhista, pelo que reformas no âmbito do processo do trabalho são percebidas de modo lninterrupto, dada a permanente adaptabilidade desta área do saber processual às inovações verificadas na ciência processual como um todo. Fazendo uma breve retrospectiva das inovações verificadas no âmbito do processo Iaboral somen­te na década de 90, verificamos que inúmeros ins­titutos do processo civil ganharam abrigo no pro­cesso do trabalho (tutela antecipatória, ações monitórias no processo do trabalho, demais no­vidades da reforma de 94), isto sem mencionar­mos as inovações específicas do processo e do judiciário trabalhista (execução de contribuições previdenciárias, extinção dos classistas, procedimento sumaríssimo, comissões de conciliação pré­via etc.). A legislação processual do trabalho não carece, portanto, de uma reforma, eis que ela se moderniza constantemente.
É justamente o anacronismo da legislação material do trabalho que responde pelo colapso da Justiça do Trabalho (1). De pouco, ou nada, adi­anta a existência de uma instituição razoavelmen­te evoluída, como o é a Justiça do Trabalho, se o arcabouço normativo que rege as relações em que se envolvem seus jurisdicionados é absolutamente antiquado.
A solução para o colapso não está dentro do judiciário trabalhista, nem em uma eventual reforma do processo do trabalho (o que, diga-se de passagem, entendemos desnecessário), mas sim dentro do direito material do trabalho, o qual precisa ser modernizado no sentido de fomentar a paz e o entendimento entre trabalhadores e pa­trões, e não o descontentamento e o litígio, como o faz a CLT de hoje que, munida do propósito de proteger o trabalhador impede-o de deliberar so­bre o exercício, concessão e pagamento dos pró­prios direitos.
Estatísticas não muito recentes apontavam para um número crescente de processos que entra­vam anualmente no judiciário trabalhista, já se apro­ximando da casa dos 300 mil processos/ano. Nú­mero astronômico, especialmente se comparado aos do Reino Unido, onde menos de 70 mil processos de natureza trabalhista são propostos por ano.
A litigiosidade é inerente a todos os recan­tos do convívio humano, do conjugal ao familiar, do social ao político. Obviamente no âmbito das relações empregatícias ela há de ser encontrada, o que é absolutamente normal e esperado. O que é inadmissível, entendemos, é uma estatuto re­gulador das relações laborais que cause mais divergência do que entendimento, onde as normas de proteção mostram-se inaptas à efetiva tutela do trabalhador.
A solução para a agonia do judiciário traba­lhista não habita nenhuma reforma processual, embora algumas inovações ainda sejam necessári­as, como a criação dos juizados especiais trabalhis­tas, mas está na modernização do direito material do trabalho, modernização esta que há de conceder a empregados e patrões melhores e mais eficazes mecanismos de negociação, isto sem atingir o âm­bito básico de proteção do trabalhador, qual seja o conjunto dos direitos garantidos na CF/88.
A concessão de flexibilidade à CLT e de um âmbito maior de debate entre patrões e emprega­dos (respeitando-se, obviamente, o núcleo míni­mo de proteção) é medida salutar não apenas para a modernização das relações laborais, mas também para a diminuição da Iitigiosidade verificada através dos números supra apresentados, eis que a lide trabalhista será fulminada em seu nascedouro.
Nota:
(1)  Discorrendo sobre a legislação trabalhista brasileira, a revista britânica “Economist” publicou artigo em 11.03.2011, com o título “Employer, Beware” (Empregador, Cuidado, em português), no qual “afirma que as leis trabalhistas brasileiras são ''extraordinariamente rígidas: elas impedem tanto empregadores como trabalhadores de negociar mudanças em termos e condições, mesmo quando há um acordo mútuo".
Para a revista, a legislação incentiva trabalhadores insatisfeitos a tentar que sejam demitidos em vez de pedir demissão.
Esse ciclo, acrescenta a Economist, induz também empresários a preferir não investir em treinamento de seus funcionários, já que esse é um investimento que pode não dar retorno.
De acordo com a publicação, as leis trabalhistas do Brasil são ''uma coleção de direitos de trabalhadores listados em 900 artigos, alguns escritos na Constituição do país, originalmente inspirados no código trabalhista de Mussolini''.
A reportagem diz que o conjunto de leis é custoso e que ''demissões 'sem justa causa'' geram multas de 4% sobre o que um trabalhador recebe", acrescentando que nem ''um empregado preguiçoso ou um empregador falido constituem 'justa causa'".
Ainda segundo o artigo da publicação britânica “em 2009, um total de 2,1 milhões de brasileiros processaram seus empregadores em cortes trabalhistas. ''Estes tribunais raramente se posicionam favoravelmente aos empregadores. O custo anual deste ramo do Judiciário é de de mais de R$ 10 bilhões (cerca de US$ 6 bilhões).
De acordo com a Economist, ''empresários há muito reclamam que essas onerosas leis trabalhistas, juntamente com elevados impostos sobre os salários, impedem-nos de realizar contratações e os empurram para fazer pagamentos por debaixo dos anos, isso quando esses pagamentos são feitos''.
O passado sindical do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva representava, no entender do empresariado brasileiro, uma esperança de que ele estaria mais bem situado que seus predecessores para persuadir trabalhadores a aderir a regras mais flexíveis que seriam melhores para eles.”
Porém, segundo o artigo em comento os escândalos que abalaram o primeiro mandato de Lula impediram a implementação desta e de outras reformas necessárias.
Fonte:
Extraído do artigo “Leis trabalhistas do Brasil são arcaicas e contraproducentes, diz 'Economist'”, publicado no site da Universo On Line, em 11.03.2011, sob o link: noticias.uol.com.br/bbc/2011/03/11/leis-trabalhistas-do-brasil-sao-arcaicas-e-contraproducentes-diz-economist.jhtm



* Publicado no Jornal do 15º Congresso Brasileiro de Direito Processual do Trabalho. São Paulo/SP : Editora LTr, 2003. p. 44-45.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Corrupção endêmica

Há algum tempo atrás um importante jornal americano mencionou em um artigo que a corrupção no Brasil seria endêmica. No dicionário diz-se de endêmico o que "é próprio de uma região ou população específica". Traduzindo para palavras simples o que a publicação americana intentou expressar foi que na política brasileira a corrupção seria algo natural, indissociável da mesma e inerente à sua natureza.
A manifestação do jornal provocou grande insatisfação dentre os governantes brasileiros, gerando mal humor até no presidente da época, o saudoso FHC. Na visão de nossos “honestos e castos” políticos, seria um absurdo um jornal estrangeiro publicar tamanho disparate. Por muito pouco aquela manifestação não gerou um sério incidente diplomático entre Brasil e EUA.
Muito embora não seja nada agradável ler numa publicação estrangeira uma manifestação deste teor, pois é algo que nos denigre, a verdade é que casos complexos, reiterados e grandiosos de corrupção, como os que ultimamente têm se apurado no âmbito do DNIT, e aos quais se juntam Mensalão do DEM, desvios de recursos da construção do TRT-SP e diversos outros, isso só pra mencionar alguns dos que atingiram notoriedade na grande mídia, evidenciam que infelizmente em nossa administração pública a corrupção revela-se endêmica e mais comum e organizada do que se imagina. Mudam-se os partidos políticos que comandam o país, muda-se a ideologia política dominante, surgem novas personalidades políticas, entra governo, sai governo, e os esquemas de corrupção não deixam de marcar sua presença.
O que causa maior estranheza, entretanto, é o fato de que os gastos dos recursos públicos são, em tese, objeto de fiscalização de diversos órgãos e instituições. Para citar apenas a administração federal, a mesma é fiscalizada pela Controladoria Geral da União, pelo MPF, pelo TCU, pelo Congresso Nacional e pela Polícia Federal, esta última, quando já há indício de irregularidades e crimes contra o patrimônio público.
É evidente que a sistemática de acompanhamento e controle dos gastos públicos, sobretudo em gastos relativos a obras é falho, pois somente depois de ocorrido o dano, por vezes gigantesco, aos cofres públicos é que se identifica a irregularidade, ou seja, quando os envolvidos já se apropriaram dos recursos e os enviaram para contas na Suíça, ou lavaram o dinheiro da forma que lhes convieram. 
Lado outro, no Brasil não temos tido muito sucesso na recuperação dos valores desviados em escândalos de corrupção. Não se sabe se por incompetência da polícia judiciária, ou se de fato a inteligência dos corruptos é tamanha que esconde os valores desviados em lugares inacessíveis (paraísos fiscais etc), a verdade é que muito pouco do que se desvia retorna aos cofres públicos.
Recentemente a empresa do ex-senador Luiz Estevão foi condenada a devolver 55 milhões de reais à União. Muito pouco, perto dos quase 200 milhões de perdas do escândalo da construção do TRT-SP, mas que não deixa de ser uma pequena vitória, se formos otimistas e acreditarmos que estes valores retornarão para o poder público.
Embora enraizada na cultura política brasileira, a corrupção pode sim ser debelada, porém isto somente será conseguido se os órgãos de fiscalização e controle acima mencionados deixarem de ter uma postura meramente repressiva dos atos de corrupção e passarem a ter um enfoque preventivo, para fulminar os esquemas de corrupção no seu nascedouro, antes de causar danos ao patrimônio público.


Publicado no Correio de Uberlândia, de 25.07.2011, e no Jornal da Manhã, de Uberaba, em 01.08.2011.

A Lei n. 9.983/00 e os crimes relacionados aos sistemas de dados previdenciários*


         1 – Apresentação:

Em 14 de julho de 2000 foi promulgada a lei federal nº  9.983 que, modificando o texto do Código Penal  (decreto-lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940), criou  uma série de delitos alcunhados, posteriormente, de  crimes previdenciários.
Foi instituída a "apropriação indébita previdenciária"- art. 168-A, com o objetivo de punir a prática, outrora comum, de "deixar de repassar à  previdência social as contribuições recolhidas dos  contribuintes, no prazo e forma legal ou  convencional", bem como a "sonegação de contribuição  previdenciária"- art. 337-A, esta caracterizada pela  conduta criminosa de "suprimir ou reduzir contribuição  social previdenciária e qualquer acessório, mediante  as condutas descritas na novel lei".
Dois tipos penais criados ainda no seio desta breve reforma do Estatuto Repressivo objetivaram intimidar e reprimir a prática de atos realizados por servidores visando à modificação, inserção e alteração de dados nos sistemas de informações da administração pública, bem como a alteração irregular do sistema público de dados. São os delitos de "inserção de dados falsos em sistema de informações" e o de "modificação ou alteração não autorizada de sistema de informações", respectivamente os novos art. 313-A e  art. 313-B do CP.
À análise destes dois últimos delitos citados circunscrever-se-ão as palavras e elucubrações deste breve comentário.

2 – A "intentio legis" da nova lei incriminadora:
A década de 90 foi marcada por escândalos e fraudes na previdência social. Estima-se que só a fraudadora Jorgina de Freitas e seu grupo de fraudadores tenham dado aos cofres públicos um prejuízo de mais de R$ 500 milhões, dos quais apenas R$ 75 milhões foram recuperados até a presente data.
O complexo sistema de fraudes perpetrado contra o INSS passava, invariavelmente, pela adulteração de dados insertos nos sistemas de informações da Previdência Social, criando situações não correspondentes à realidade, as quais ensejam, para o sistema previdenciário, o ônus de arcar com o pagamento do benefício ilegalmente obtido, os quais, somados, atingiram as cifras astronômicas acima  mencionadas. 
Mas para o êxito do empreendimento criminoso era, senão indispensável, pelo menos de grande utilidade a participação do funcionário público que tivesse acesso ao sistema de dados da Previdência Social, vez que através dele poder-se-ia facilitar a  adulteração dos dados dos segurados, tornado possível  a fraude e o auferimento irregular do benefício.
Não foi outra, portanto, a "intentio legis" da Lei 9.983-2000, qual seja a de inibir a prática de tais atos irregulares que tantos prejuízos trouxeram, e ainda trazem, aos já desequilibrados cofres da  previdência social.
É sabido que o texto da novel lei incriminadora não faz menção especial aos funcionários da previdência, abrangendo, portanto, todos os  servidores públicos. Entretanto, dados os recentes acontecimentos no âmbito da previdência, não há de se discutir que o desiderato dos novos tipos penais é o de intimidar os funcionários do INSS no que pertine à  prática de atos de que possa resultar prejuízos ao  erário.

 3 – Os novos tipos penais:
Conforme o mencionado na apresentação deste estudo, a lei 9983/2000 introduziu no texto do Código  Penal mais quatro delitos, dos quais dois diretamente destinados a inibir a prática, por parte de  funcionários, de atos que importem alteração ou  indevida inserção de dados em sistemas de informações  da administração pública.
Um dos tipos corresponde ao delito de "inserção de dados falsos em sistema de informações" cuja prática dá-se através da conduta de  "inserir ou facilitar, o funcionário autorizado, a  inserção de dados falsos, alterar ou excluir  indevidamente dados corretos nos sistemas  informatizados ou bancos de dados da Administração Pública com o fim de obter vantagem indevida para si ou para outrem ou para causar dano". Para o crime há a previsão da pesada reprimenda de 2 (dois) a 12 (doze)  anos de reclusão, além de multa.
Infere-se, da simples leitura do preceito primário (incriminador) que o delito corresponde a um crime próprio, ou seja, só podendo ser praticado por funcionário autorizado a inserir ou modificar dados  dos sistemas de informações do poder público. Há ainda, para a caracterização do ato delituoso, de ter o agente se portado com o fito especial de obter  vantagem indevida para si ou para outrem, ou para  causar dano (dolo específico, na linguagem dos  penalistas).
A maior severidade da punição (reclusão de 2 a 12 anos, cumulada com a multa) justifica-se pelo fato de que a conduta ali reprovada corresponde  fielmente ao proceder dos funcionários do INSS que se  envolveram nas fraudes comentadas no item antecedente. Constitui manifestação da elevada reprovabilidade do legislador a atos potencialmente tão danosos aos cofres públicos. Neste aspecto, aliás, oportuna é a afirmação de Cesare de Beccaria, decano do direito penal moderno, quando proclamava "quanto maior a lesividade do ato, maior será a sua punição" (princípio da proporcionalidade).
O princípio da proporcionalidade justifica ainda a concessão, ao juiz, de grande "espaço" para fixação da pena, qual seja de 02 a 12 anos. Isto porque na fixação da pena base não poderá o magistrado fugir à obrigação de avaliar a extensão dos danos, atribuindo, verbi gratia, a pena máxima a funcionários que se envolverem em fraudes de grande monta, como as anteriormente comentadas. Inegável, portanto, o feitio intimidativo de tão severa reprimenda.
O segundo delito aqui em comento também se trata de um crime próprio, na medida em que só funcionário público pode praticá-lo. A conduta penalizada consiste em "modificar ou alterar, o funcionário, sistema de informações ou programa de informática sem solicitação ou autorização da autoridade competente".
Enquanto, no crime anterior, a ação consistia, basicamente, na alteração dos dados, neste pune-se a alteração do sistema-programa de informática, cuja razão de ser é precisamente o manejo daqueles dados.
Não há a exigência de dolo específico, ou seja, de que o agente atue com o desiderato de causar dano ou obter vantagem, ainda que estes, vantagem e dano, possam ocorrer posteriormente, aumentando a pena de um terço à metade.
Entendeu o legislador que referida conduta, ainda que não desejada e condenável, não é potencialmente tão lesiva quanto o delito anterior, daí a menor reprimenda, três meses a dois anos de detenção, cumulada com multa. Com a devida vênia, acreditamos que seria adequada a atribuição de pena mais rigorosa, especialmente no caso de superveniência de dano pois, dada a natureza da alteração irregularmente implementada no sistema de informações, os prejuízos ao erário podem atingir enormes proporções.

 4 – Conclusão:
Não foi sem propósito a afirmação do digníssimo Dr. Ricardo Berzoini, atual Ministro de Previdência quando, em pronunciamento de 27/01/2003, logo no início das discussões relacionadas à reforma da previdência, manifestou a necessidade urgente de modernização dos instrumentos de informática e tratamento de dados do sistema de previdência social. A informática vem tendo a cada dia mais relevância e ingerência na vida moderna e até mesmo o poder público vem colhendo há tempos os benefícios de sua racional utilização.
No entanto, mais do que uma mera atualização técnica no tratamento dos dados, propugnamos pela edificação de um coerente e eficaz sistema de fiscalização da conduta profissional dos funcionários autorizados à inserção de dados no banco de informações previdenciárias. Evitar-se-ia, com isso, a prática da fraude no seu nascedouro.
A história recente dos vergonhosos episódios verificados quando das vultosas fraudes da Previdência Social demonstram que as informações guardadas em arquivos públicos devem ser corretamente manejadas e fiscalizadas, sob pena de o Estado ter de vir a arcar com prejuízos de imensuráveis proporções.
Os dois tipos penais comentados neste breve estudo demonstram a preocupação de nossas autoridades com a guarda e tratamento dos dados no âmbito do Poder Público, com vistas a que fraudes não mais aconteçam, ou pelo menos que aconteçam em menor quantidade.
Resta-nos, apenas, esperar que os tipos penais criados no bojo da lei 9983/2000 surtam a eficácia social esperada, e que os potenciais  infratores intimidem-se quando da prática de atos tão condenáveis e reprováveis.
Desejamos, apenas, que não ocorra com a lei 9.983/2000 o mesmo fato que se verificou com a lei 8.072/1990, quando da colocação dos sequestros entre os crimes hediondos, todos tratados com considerável severidade. Nunca se viu tantos sequestros como na década de 90!
Somente a severa e exemplar punição dos infratores da lei 9.983/2000 pode efetivar o caráter intimidativo que caracteriza toda norma incriminadora.



* Publicado no Jornal do 16º Congresso Brasileiro de Previdência Social. São Paulo/SP: Editora LTr, 2003. p. 52-53.

sábado, 9 de julho de 2011

O polêmico Exame de Ordem


O último exame unificado da Ordem dos Advogados do Brasil, popularmente conhecido como “Exame de Ordem”, registrou em sua última edição índices de reprovação geral superiores a oitenta e oito por cento. Em outras palavras, de cada cem candidatos inscritos apenas doze, em média, lograram aprovação.
Os resultados são preocupantes, especialmente se considerarmos que para a aprovação exige-se não mais que cinquenta por cento de acerto das questões apresentadas.


Mesmo instituições públicas tradicionais, como a famosa e cinquentenária Faculdade Direito da UFU, da qual somos egresso, não obtiveram grande percentual de aprovação no certame.


Dentre as instituições particulares de pior desempenho a reprovação atinge a absurda marca de noventa e sete por cento.


A reprovação em índices tão elevados gerou debates diversos, tendo uns criticado a postura severa da OAB, outros elogiado a mesma instituição, face ao seu rigor e seriedade na seleção dos novos causídicos.


A nosso modesto ver censura alguma há de ser oposta à OAB, pois este rigor na seleção somente pode contribuir para uma qualificação cada vez melhor dos profissionais que adentram à carreira advocatícia, no que restarão beneficiadas as pessoas que recorrem aos serviços destes profissionais.


Uma demanda interposta por um profissional desqualificado poderá resultar em grandes e irreversíveis prejuízos para a pessoa a quem patrocina. Um advogado qualificado somente benefícios e segurança trará ao cliente cujos interesses estejam sobre seu patrocínio, seja em juízo ou fora dele.


Lado outro, é visível que o MEC tem se furtado à sua obrigação de zelar pela qualidade do ensino superior, e isto não se aplica somente aos cursos de direito, mas também às demais graduações. No caso específico dos cursos jurídicos basta se verificar que há cursos, sobretudo de instituições particulares de ensino, que há anos vem tendo elevados índices de reprovação e nenhuma censura ou advertência recebem daquela instituição.


Um atento e crítico leitor poderia tergiversar: “mas as faculdades de Direito não se destinam apenas à formação de advogado, mas também à formação de juízes, promotores, professores etc”. O questionamento procede em termos, porém, a advocacia ainda é a profissão jurídica mais procurada, e se os cursos de direito não conseguem municiar seus alunos do saber científico básico para ingressar nesta profissão sem dúvida falham, e devem repensar sua didática e estrutura curricular.


Ou as exigências e o acompanhamento do MEC com relação aos cursos jurídicos se tornam mais severos ou ano após ano os índices de reprovação no exame de ordem aumentarão. A própria OAB informa que dentre os candidatos que se submetem ao exame pela segunda vez o índice de aprovação é de sete por cento, o que evidencia a dificuldade de se superar uma má formação acadêmica.


Propugnamos que a OAB não ceda às pressões e mantenha seu rigor nos próximos exames, pois esta instituição tem a prerrogativa legal de velar pela qualificação dos profissionais que ingressam em seus quadros.


Enquanto entidade de classe à OAB cabe estabelecer a qualificação mínima a ser exigida dos candidatos, de modo a que possam ser de qualidade os serviços prestados pelos causídicos que vieram a nela ingressar.


A Ordem dos Advogados está a dar um ótimo exemplo às demais entidades de classe. E a sociedade só tem a ganhar, pois advogados qualificados contribuem para o exercício da cidadania.


Publicado no Jornal Correio de Uberlândia, de 15.07.2011.