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domingo, 4 de maio de 2014

Processo eletrônico e acesso ao Judiciário

1 – Introdução:

A evolução científica e tecnológica é inerente ao ser humano e todos temos, já há muito tempo, colhido os frutos dos avanços que a inteligência humana tem colocado à nossa disposição.

No âmbito específico da informática os avanços tem sido grandiosos e muitos benefícios têm proporcionado à humanidade, seja permitindo melhoria nos meios de comunicação entre as pessoas, seja proporcionando um maior acesso às informações, enfim, descabe enumerar as incontáveis benesses que os avanços no mundo dos computadores trouxeram para o mundo das pessoas.

O universo dos profissionais do direito igualmente não poderia deixar de ser beneficiado pelos avanços da informática e referidos avanços estão a culminar no chamado processo eletrônico, através do qual se pretende a substituição dos autos de papel por arquivos virtuais e eletrônicos, sendo igualmente eletrônicos todos os demais atos processuais praticados.

Embora à primeira vista possa parecer cercado de vantagens o dito processo eletrônico, pois traria economia de papel, em tese daria rapidez ao trâmite dos processos, dada a desnecessidade de juntada de documentos, permitiria a visualização e acesso aos autos a qualquer momento, etc, a verdade é que uma implementação autoritária do processo eletrônico pode trazer prejuízos aos jurisdicionados, atingindo pela via direta o direito fundamental do acesso ao Judiciário, insculpido em nossa Carta Política de 1988 em seu artigo 5º, inc. XXXV.

Adiante melhor desenvolveremos nossas ideias.

2 – Processo eletrônico e acesso à Justiça:

Nossa Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXXV informa que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário a lesão ou ameaça a direito. A citada norma constitucional assegurou o direito fundamental do chamado acesso à Justiça.

Numa análise não aprofundada da questão da adoção do processo eletrônico pode passar despercebida eventual colisão da sistemática que se queira implementar com o direito fundamental em questão.

Ocorre que o direito ao acesso ao Judiciário não há de ser concebido apenas quanto à possibilidade de a pessoa lesada ou ameaçada de lesão em seu direito poder bater às portas da Justiça. Não está se falando que o processo eletrônico impedirá o acesso à Justiça, mas sim que a forma como o mesmo vier a ser implementado poderá dificultar o acesso ao Judiciário estando, nestas circunstâncias, a ferir os dizeres do sobrecitado inciso XXXV.

Melhor explicando, o processo eletrônico demanda recursos de informática que nem todo jurisdicionado e mesmo nem todo advogado, conforme for a localidade em que atua, tem à sua disposição. Em nosso país os serviços de Internet são precários e sobretudo onerosos, sendo que o acesso ao peticionamento eletrônico de regra é sujeito a obtenção de certificações digitais e aquisição de aparelhos a onerar ainda mais o labor do causídico.

Ainda que o peticionamento em papel possa parecer algo arcaico, temos que melhor atende ao espírito do amplo acesso ao Judiciário que um sistema repleto de exigências técnicas que dificultarão o simples ato de propor uma ação, seja pelos custos que estão agregados ao uso do processo eletrônico (certificações, internet em alta velocidade etc), seja pela complexidade inerente ao uso do sistema (1).

Nos preocupa, sobretudo, a adoção do processo eletrônico quando se impede, concomitantemente à sua implementação, o uso do "vetusto” peticionamento em papel. Esta situação fulmina o direito ao acesso à Justiça para aquele causídico e para aquela parte (2) que não tenha se desincumbido das inúmeras e complexas exigências para a utilização do processo eletrônico. Em nome da modernidade se está a ferir um direito fundamental.

Uma tese despretensiosa como a presente não esgotaria a apreciação das possíveis inconstitucionalidades que rondam o processo eletrônico, mas a título de ilustração a Lei nº 11.419/2006 prevê que o procurador deverá ser intimado e citado virtualmente em um portal especifico, exigindo-se prévio cadastro no mesmo. Faltante este cadastro, a parte não tomará conhecimento do ato e sofrerá as consequências processuais disto. Inquestionável a inconstitucionalidade! (3)

3 – Conclusões:

O processo eletrônico pode trazer efetivamente inúmeros benefícios à Justiça brasileira, entretanto sua adoção há de ser parcimoniosa, efetivada paulatinamente e não se vedando a utilização do peticionamento em papel para a parte e para o causídico que assim o desejar.

Limitar-se o acesso ao Judiciário à via eletrônica, e é essa a sensação que se depreende do rápido avanço do PJe, indiscutivelmente fere o direito constitucional ao acesso ao Poder Judiciário.

O PJe, sob o argumento da modernidade, da agilidade e da economia, está a esconder dificuldades e imperfeições que dificultam o acesso ao Judiciário, recanto aonde milhões de brasileiros direcionam suas lídimas pretensões de justiça.

Adotar-se o processo eletrônico, a princípio, nos soa até adequado. Abolir-se o peticionamento em papel nos soa, data máxima vênia, beirar à ofensa ao texto constitucional.

4 – Notas:

(1) Cumpre aqui citar, a título de exemplificação da complexidade inerente ao sistema, o art. 2º da Instrução Normativa nº 3/2006, do TRT da 3ª Região:

“As petições, acompanhadas ou não de anexos, apenas serão aceitas em formato PDF (Portable Document Format), no tamanho máximo, por operação,  de 20 folhas impressas ou 40 páginas, utilizando-se frente e verso, respeitado o limite de 2 megabytes, sendo que as páginas deverão ser configuradas para papel tamanho A4 (210x297 mm) e numeradas, sequencialmente, no canto inferior do lado direito”.

(2) Se a um jovem advogado o processo eletrônico pode trazer dificuldades imaginemos a uma pessoa idosa, inábil a manusear os recursos de informática.

(3) As ponderações são de Heitor Vitor Mendonça Sica, em “Comunicação eletrônica dos atos processuais: breve balanço dos cinco anos de vigência da Lei nº 11.419/2006. Revista do Advogado, AASP, n. 115, p. 69-76, abr. 2012.

Publicado no Jornal do 54º Congresso Brasileiro de Direito do Trabalho, evento realizado em São Paulo/SP, entre os dias 26 e 28.05.2014.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

A lesão estética e a reparação de natureza moral e material: uma tentativa de esclarecimento

Toda pessoa está sujeita a um infortúnio que venha a causar-lhe lesão de natureza estética, trazendo-lhe uma depreciação de sua imagem perante a sociedade e especialmente perante si mesmo.

Seja o trabalhador em seu ambiente de labor, seja o transeunte caminhando pelas vias públicas, seja o motorista trafegando por uma rua qualquer enfim, a qualquer momento podemos ser acometidos por um evento do qual sobrevenham lesões físicas que promovam o afeiamento do indivíduo ou qualquer sorte de dano corpóreo que venha a prejudicar a imagem da pessoa.

A lesão de natureza estética, que inicialmente sequer era digna de reparação, conforme estudo histórico apresentado por Yussef Sahid Cahali, à fl. 198 da 4ª edição de sua já clássica obra “Dano Moral”, foi galgando junto aos tribunais e à doutrina espaço e aceitação sendo já há um certo tempo digna da adequada tutela junto ao judiciário brasileiro.

Impende, por hora, questionar se a lesão estética (1) pode ser cumulada com o dano moral, ou se ela está inserida neste?

A questão é um tanto quanto intrincada e nossa jurisprudência majoritariamente tem caminhado no sentido de admitir a cumulação das indenizações, o que não nos parece ser o mais acertado.

Com efeito, o Superior Tribunal de Justiça vai tendo sua jurisprudência uniformizada no sentido de que “é cabível a cumulação de danos morais com danos estéticos quando, ainda que decorrentes do mesmo fato, são passíveis de identificação em separado.” (2)

A seu turno, o Tribunal Superior do Trabalho orienta-se “no sentido de que há possibilidade de cumulação do dano moral com o dano estético, uma vez que, embora oriundos do mesmo fato, os bens tutelados são distintos.” (3)

Embora seja a jurisprudência uma relevante fonte do direito, idônea a ilustrar e fomentar o debate jurídico, temos que não está imune a equívocos, ainda que caminhe no sentido de uma dita uniformidade. Aliás, se inquestionáveis fossem os entendimentos emanados dos tribunais engessado restaria o direito, tolhida a sua necessária e imperativa evolução.

Pois feita esta ponderação, passemos à apreciação, breve por sinal, da questão em tela.

Segundo pensamos a lesão estética é o fato gerador do direito à reparação, a qual poderá tanto ter natureza moral, dado o inegável sofrimento que impõe à pessoa, quanto poderá repercutir materialmente, como por exemplo nos casos em que caberá a condenação do autor da lesão a custear cirurgias reparadoras ou outros gastos para minimizar o dano.

Teresa Ancona Lopez, citada por Rui Stocco (4), assevera com aguçada propriedade que “o dano estético passageiro não é dano moral e sim dano material, facilmente indenizável e facilmente superável”. Rui Stocco, mais adiante, expressa que “o dano estético há de apresentar uma certa definitividade, ou seja: se possível de ser reparado, resolve-se como dano patrimonial” (4).

A lesão que repercute sobre a beleza física da pessoa há de dar ensejo ou ao dano moral ou ao material. Tem o condão de ensejar o dano moral a lesão que se revela perene, que acompanhará a pessoa para sempre. Sendo reparável, ou seja, não sendo definitiva, resolve-se em danos materiais (5). Em resumo, a lesão estética propiciará ou o dano moral, ou o dano material.

Um traço peculiar da lesão estética é que o corpo físico é atingido, podendo desta situação repercutir consequências dignas de tutela pelo direito. Assim, o sofrimento imposto à pessoa repara-se a título de danos morais, ao passo que os gastos que o infortúnio tenha lhe causado, tais como medicamentos, cirurgias, consultas etc corresponderiam ao dano material. Enfim, segundo nosso modesto pensar, da lesão estética há de resultar dano moral, ou dano material, ou até mesmo os dois. Não podemos, no entanto, conferir uma natureza especial à lesão estética, enquadráveis que estarão suas consequências em um das duas modalidades de dano existentes.

Toda e qualquer consequência da lesão estética, valorável juridicamente, constituirá ou dano moral, ou dano estético, e assim será indenizada. Não se trata o dano estético de um tertio genus!

Conclusões:

A lesão estética, segundo a concebemos, poderá dar ensejo à reparação de natureza moral, aqui ponderada e sopesada toda a repercussão que o fato trouxe para o aspecto psíquico da vítima, devendo ser apreciadas a dor vivenciada, a dimensão dos prejuízos advindos da lesão à imagem da pessoa e poderá, igualmente, dar ensejo à reparação de natureza material, quanto às repercussões de caráter patrimonial que advenham do fato, aqui, por sua vez, incluídos os custos com tratamentos de reparação ou diminuição da lesão estética, a perda ou redução da capacidade laborativa etc.

Conceber-se que não se deve cumular o dano estético com o dano moral não gera prejuízo algum à vítima, pois não se está deixando de indenizá-la pela lesão de natureza estética, mas apenas se está circunscrevendo o fato (lesão estética) a uma das duas formas de reparação aceitáveis juridicamente, quais sejam, a indenização por dano moral, e a indenização por dano material.

Aliás, outra não poderia ser a conclusão, na medida em que a própria Constituição Federal de 1.988, em seu artigo 5º, inc. V, assegurou a reparabilidade dos danos materiais, morais e à imagem, não se podendo conceber a vedação à indenização por dano estético, sob pena de retroagirmos ao pensamento que prevalecia no STF até a primeira metade do século XX.

Ainda que a jurisprudência hoje reinante entenda o contrário, a melhor orientação sobre o tema, a nosso ver, é no sentido de que a lesão estética é o fato gerador do direito à reparação moral, dado a diversidade de sofrimentos dela decorrentes e o dano material, dadas as questões patrimonialmente mensuráveis, que rodeiam o fato, donde se depreende ser ilógico indenizar, em separado, a lesão estética (6).

Aguardemos a evolução jurisprudencial, no sentido de um tratamento lógica e cientificamente mais bem apurado do tema.

Notas:

(1) Preferimos a terminologia lesão estética a dano estético. A profusão do uso da palavra dano, em sede de responsabilidade civil, pode gerar confusões.

(2) REsp 659715/RJ - RECURSO ESPECIAL 2004/0096845-6, Relator: Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Órgão Julgador: QUARTA TURMA, Data do Julgamento: 14/10/2008, Data da Publicação/Fonte: DJe 03/11/2008, RSSTJ vol. 35 p. 422.

(3) Processo: AIRR - 209000-66.2008.5.15.0115 Data de Julgamento: 12/03/2014, Relator Ministro: Guilherme Augusto Caputo Bastos, 5ª Turma, Data de Publicação: DEJT 21/03/2014.

(4) Tratado de Responsabilidade Civil – Doutrina e Jurisprudência, Tomo II, 9ª ed. Editora RT, p. 923.

(5) Pedimos vênia aqui para divergir pontualmente dos autores na medida em que mesmo sendo temporária a lesão não se pode afastar uma proporcional indenização por danos morais, face ao sofrimento vivenciado, ainda que passageiro.


(6) Sobre o tema já dissertamos, em artigo intitulado “O acidente do trabalho e a questão da cumulatividade das indenizações por dano moral e estético decorrentes de um mesmo fato”, publicado no Publicado em Jornal do 4º Congresso Brasileiro de Segurança e Saúde no Trabalho, fls. 37/39, evento realizado em São Paulo entre os dias 24 e 25 de novembro de 2003, sob a coordenação do Dr. Leonídeo F. Ribeiro Filho.

Publicado no Jornal do 54º Congresso Brasileiro de Direito do Trabalho, evento realizado em São Paulo/SP, entre os dias 26 e 28.05.2014.